Ligar dois pontos geográficos com mais ou menos significado sempre foi um tema que me interessou. O ano passado tentei ligar o ponto mais a norte de Portugal a um dos pontos mais a sul, tarefa que concluí com algum sucesso. Não demorou até enfiar na cabeça que tinha de fazer do ponto mais a este ao ponto mais a oeste, que é como quem diz, de Paradela (Miranda do Douro) ao Cabo da Roca (Sintra).
A data foi sendo empurrada, ora porque não me sentia preparado, ora porque não tinha todo o material que queria, leia-se, bicicleta nova. Até que me apercebi que um fim de semana de quatro dias em Agosto seria a última hipótese que teria de o fazer, antes de Setembro e das férias. Eu e a Patrícia, a minha cara metade e suporte, pusemos a logística a andar de maneiras a que no dia 5 de Agosto estava no autocarro a caminho de Miranda do Douro. Não é que morra de amores por andar de autocarro. Aliás, detesto. Mas graças à cavaqueira do nosso país, as linhas de comboio estão abandonadas e/ou não transportam bicicletas e/ou são muito mais caras e/ou não chegam onde deveriam chegar. O facto da linha do Douro não transportar bicicletas é no mínimo tristemente hilariante.
Depois das 5-6 horas de autocarro, passei o que me restou da tarde a explorar um pouco Miranda do Douro, fazer umas compras para o pequeno-almoço do dia seguinte, jantar e pouco mais. É muito bonito os garotos trabalharem nas férias de verão mas por favor não os ponham a atender gente nos restaurantes. O jantar demorou-me duas horas e uma das frases que o marcou foi “quer mais alguma coisa ou quê?”
A Patrícia arranjou-me um quarto muito barato onde pude ter a bicicleta comigo e onde havia de ficar até às 5 da manhã. Lá para as 6h estava no jardim do hotel a preparar o meu pequeno-almoço e a pendurar uns pães na bicicleta para o segundo pequeno-almoço, que viria a acontecer uma hora mais tarde. É que ainda tinha que chegar a Paradela, um pouco mais para norte e mais para este, afinal era esse o objectivo. A manhã começou preguiçosa, lenta, puxada pelo peso da bicicleta com o seu espigão de selim a enfiar-se dentro do quadro por não ter ficado bem apertado depois da viagem de autocarro. No entanto, todos estes pormenores iam sendo atenuados pelo nascer do sol na paisagem do Douro Internacional. Além disso, o meu primeiro bom dia foi para uma pastora a cavalo num burro rodeada de ovelhas e de um canito.
Tinha ideia de começar na fronteira e podia escolher entre percorrer uma estrada de terra até um certo ponto, que realmente penso ser a estrada mais a este de Portugal ou percorrer o bocado de estrada que realmente liga a Espanha. Por uma ser de terra, com pedras de tamanho razoável, e por outra ser uma incerteza de paralelo, decidi nesse momento que o meu ponto de partida seria a Igreja de Paradela.
Existem por lá alguns cães, quase sempre com as mesmas características. Uns, de estatura média, corpo esguio e orelhas espetadas, ladram mas não assustam. Outros, grandes como um cordeiro, claramente de pastoreio, não ladram mas assustam. E foram dois destes últimos que me apareceram no meio da estrada que lhes servia de cama ao sono da manhã. Achei por bem não os despertar e dar uma pequena volta para os contornar. Volta essa que contou com mais um rebanho e cães, mais pequenos e acompanhados pelo dono.
A estrada aberta e as pedaladas mais fortes trazem ao de cima um sentimento familiar mas para sempre bom. Saber que aquele dia vai ser preenchido com uma viagem de bicicleta e o próximo também e talvez o outro a seguir também, fazer o que se gosta e sabe durante horas a fio, é uma sensação de eternidade compacta que o planalto e ritmo alegre enfatizaram.
Esse planalto foi uma bela surpresa. A estrada N221 é relativamente fácil e só saí dela por breves quilómetros, apenas os suficientes para não me afastar muito do Parque Natural do Douro Internacional.
Apesar de ter passado algum tempo a desenhar o percurso da melhor forma que me foi possível, cometi alguns erros nesse desenho. Por exemplo, e na teoria, as vistas sobre o Rio Douro, da estrada de Freixo de Espada a Cinta para Barca d’Alva, por Poiares seriam magníficas. Na prática a estrada é demasiado inclinada e estive mais preocupado em não cair por uma ravina do que propriamente apreciar as vistas. A alternativa, que deveria ter tomado, seria muito mais rápida e poupado algum esforço e tempo, era a continuação da N221.
Avistei Barca D’Alva lá para perto do meio-dia. No primeiro tasco onde parei não havia gelados nem bifanas. No segundo não havia presunto. Nem sopa. Não procurei mais e contentei-me com um pão com fiambre e queijo misturada com um Calipo. Mal conhecia eu a subida que me esperava.
E que subida! Tive a sorte de escolher o que foi provavelmente o fim-de-semana mais quente do ano para fazer esta viagem. Só algumas caravanas se aventuravam no sol do meio-dia. A minha teimosia e alguma resistência ao calor fizeram-me avançar, ainda que devagar, em direcção a Figueira de Castelo Rodrigo, ainda que a dada altura uma Águia me rondasse e um Grifo pousado numa pedra olhasse para mim já com água na boca e mesa posta. “Hás-de passar fome” – pensei eu, rindo-me com a imagem mental do bicho a temperar-me com sal. Sei que por lá parei numa superfície comercial para me recompor e reabastecer. Água, acima de tudo, nunca me poderia faltar.
Desenhei o percurso mais ou menos a direito. O que significa atravessar serras em vez de as contornar, ignorar os caminhos mais planos para descobrir, perdão, para me descobrir nas dificuldades. Existem estradas e paisagens magnificas durante todo o caminho que não vou descrever exaustivamente, quer por não me lembrar do nome da estrada ou zona, quer por não ter a palavra suficiente, quer por não me apetecer. Afinal, elas estão lá, é só ir ver. Levantar esse corpo preguiçoso e ir para lá, seja ‘lá’ aquilo que muito bem entenderem.
Assim sendo avanço o relato para a Serra da Estrela. Não sei muito bem porque decidi atravessar esta serra mas sei que me foi impossível resistir a este desejo e o meu plano original era acabar o primeiro dia do lado sul da serra, lá para Unhais da Serra. Não aconteceu. Ao fim da tarde estava a chegar a Sabugueiro nos 1000 metros de altitude, depois da subidinha dos 500 para os 1500 de Nabainho para o segundo corte com indicação Sabugueiro da EN232, seguida de uma descida que não me deixa saudades, tal é o estado do alcatrão. Bem, tinha que tomar uma decisão, ou continuava a subida até aos esperados 2000 metros ou passava a noite por ali. Não tinha qualquer experiência nocturna na Serra da Estrela, não fazia ideia das temperaturas que iriam estar naquela noite nem se conseguiria fazer a descida do outro lado durante a mesma noite. Por outro lado, a aldeia estava em festa, o calor irradiava das pedras das casas e eu estava com fome e cansado. Fiquei, apesar de ter feito apenas 250km.
Deitei-me enquanto esperava que as sopas e bifanas da festa começassem a ser servidas. Reparei, como se de repente tivesse tomado consciência de mim, que estava bastante maldisposto. Tão mal que quando fui buscar a minha comida estava a ver que ia dar um beijinho ao chão da aldeia. Lá me sentei e comi o meu caldo verde devagarinho com bocadinhos de pão da bifana de maneira a evitar temperos agressivos. Mais um caldo verde e às duas por três já comia a bifana alegremente. Mais um bocado e já estava com um copo de sangria na mão e ainda tive direito ao espetáculo do bailarico. No entanto, não me podia esquecer que estava ali para dormir e tinha que procurar um canto, já que um quarto com aquele barulho estava fora de questão. Acabei por me deitar num banco de jardim durante umas horas. O meu medo da temperatura depressa se desvaneceu. Não foi preciso sequer fechar o saco cama. Pouco passava das 5 da manhã já tinha a bicicleta encostada à Igreja e praguejava para mim próprio enquanto arrumava a tralha: é que me tinha esquecido que precisava de pequeno-almoço. As barras energéticas haviam de servir.
Acho que demorei quase duas horas a alcançar a Torre. É fácil ocupar a lentidão com as paisagens que o amanhecer oferece. O ponto mais alto de Portugal Continental não é nada de especial. São apenas meia dúzia de construções com mau aspecto a que depressa se volta as costas para a tão esperada descida em direcção a Covilhã. Essa tal descida é fantástica mas convém levar a mão perto do travão. Existem curvas apertadas e muita pedra pela frente. Não sou grande coisa a descer e os travões a chiar confirmavam-me isso. O meu percurso mandava-me interromper a descida pela N339 para continuar por uma tal de Nave de Santo António e foi isso mesmo que eu fiz. O problema foi o piso que piorou bastante até se transformar numa estrada de terra. Raios, pensava que tinha eliminado todas as estradas de terra. Para trás é que não ia voltar e confiante que os meus pneus me iam proteger de algum objecto afiado continuei. Aliás, na traseira levava liquido anti-furo, a frente é que ia mais desprotegida. Apareceu de novo o alcatrão mas de suave tinha pouco, ainda assim era a descer e para baixo todos os santos ajudam. Não tarda estava no sopé da serra o que terminou um dos capítulos da viagem.
Importava agora andar e andar bem para aproveitar a manhã. Mas a verdade é que pelas 11:30 e 350km, na localidade de Cambas, se não estou em erro, encostei a bicicleta no primeiro restaurante que vi. Nem reparei nas horas e fui perguntar se tinham almoço. Não arredei pé e acabei por adormecer debruçado sobre uma mesa de café. Ainda lá estava agora se não fosse a senhora a acordar-me para me dizer que ia começar a fazer os almoços. Era um daqueles restaurantes mal decorados e sem grande aspecto mas onde, pela conversa, quem lá estava percebia da comida que estava a servir e isso era tudo o que me interessava. O almoço foi lento e depois de almoço não sabia para onde ir até me aperceber que estava perto de uma praia fluvial. Boa, vou dormir este calor, pensei. Não adormeci mas descansei até lá para as 4 da tarde. O dia ainda estava abrasador mas não podia esperar mais. Com sorte tinha pela frente uma estrada serpenteante ao longo do Zêzere. Claro que não, o que tive foi uma das subidas mais íngremes de todo o caminho! Mais cedo ou mais tarde a estrada lá haveria de ficar mais ou menos plana ao longo da Ribeira da Sertã. Perdi a noção à quantidade de água que bebi durante este percurso mas sei que fiquei mal disposto por causa disso.
A próxima etapa seria a N2, que digam o que disserem, é desagradável. É uma estrada nacional com perfil de via rápida, uma transformação que muitas estradas sofreram graças à lavagem cerebral que o país sofreu quanto à utilização do automóvel. Tão desagradável que acabei por sair em direcção à praia fluvial do Penedo Furado, estradas secundárias são bem mais apetecíveis. Descansei um pouco na praia e comi um pão que transportava há algumas horas. Anoiteceu enquanto saí do fundo onde a praia se encontra, em direcção a Abrantes.
De noite todos os gatos são pretos e às tantas já não sabia bem em que direcção ia, confusão causada pelo tal traçado que desenhei. Não haveria de ser a primeira vez que tal traçado havia de me confundir, mesmo de dia. Até que me apercebi que estava na estrada paralela ao rio Zêzere em direcção a Constância. Isso alegrou-me e deu-me força.
À excepção da indústria de celulose do outro lado do rio, Constância é um lugar aprazível onde costumo parar em algumas voltas mais demoradas. Desta vez não fui directo para o café do costume mas estiquei-me antes na relva. Acabei por adormecer o tempo suficiente para a cozinha já estar fechada à hora que acordei, com um bocadinho de frio por ter o jersey aberto. Mais uma vez, tinha que decidir onde passar a noite: podia descansar mais um bocado por ali ou avançar rumo ao sul, rumo a Santarém, já que as estradas que me esperavam eram familiares e, depois da soneca, até me sentia com vontade de ir. Fui. Pelo caminho de terra que liga Vila Nova da Barquinha à Quinta da Cardiga, depois Golegã, Pombalinho, até encontrar a estação de caminho-de-ferro de Vale de Figueira, onde decidi pernoitar. Não é que tenha sido grande decisão. Uma estação da linha do norte, ainda que meio desactivada, tem sempre comboios, pessoas a pé às 4 da manhã que se sentavam perto de mim sem me ver e, na falta de árvores, deitei-me num jardim onde tinham estado a cortar silvas e só o descobri depois de me deitar. Ainda assim, descansei e às 5 da manhã fui-me novamente. A ideia era ultrapassar Santarém antes do reboliço de um centro urbano numa segunda de manhã.
A paisagem mudou novamente, tinha deixado os campos e entrado na região oeste, mais acidentada e com as suas cores características. Este piso acidentado ainda havia de me presentear com algumas surpresas como uma subida logo a seguir à Ota.
Às 7 da manhã encontrei um posto de combustível de aldeia com alguns bolos e pão, que acompanhados pela sombra de uma grande videira me convenceram a parar, apesar de paragens em bombas de combustível não fazerem parte dos meus lugares de eleição.
Ao atravessar uma zona que muitas vezes também uso nas minhas voltas mais caseiras, reconheci algumas estradas mas outras vezes, demasiadas vezes, pensei “a sério que é por aquela subida?”. Mantive-me fiel ao traçado. Uma lealdade que havia de me deixar mazelas nos músculos da perna direita. Sobral de Monte Agraço, Sapataria, Malveira, a zona oeste passou-se e ainda havia de me aperceber perto da costa durante a manhã.
Algumas das estradas de aproximação à costa não são das mais agradáveis de percorrer. Bocados de alcatrão com negócios dos dois lados, aspecto sujo e um fluxo constante de carros. Felizmente apanhei algumas estradas mais secundárias com outras vistas e outro aspecto; infelizmente algumas delas tinham subidas que já me faziam baixar a cabeça em sinal de humildade.
Por falar em subidas, a última delas começa, se não estou em erro, em Mucifal, finalmente na direcção do Cabo da Roca. Um dos problemas desta subida é também o fluxo constante de carros com pouco espaço para onde fugir em caso de emergência. Mais cedo ou mais tarde a N247 deixa de subir e o agradável serpentear é vasculhado pelo olhar em busca da placa azul com os dizeres “Cabo da Roca”. Depois é uma descida em direcção ao mar e está feito.
E é isso, está feito. Sem grandes comemorações. Afinal de contas o fim está cravado de lixo, turistas e gente parva.
54 horas. Um pouco mais do que esperava. Um valor a bater, basta escolher dias mais frescos, rotas mais rolantes. Aceitas o desafio?
Comments (4)
Fabuloso, eu comecei por uma mais fácil, ligar um dos pontos mais baixos (qq praia) ao ponto mais alto. Foi no ano passado, em Agosto, entre a praia da Vagueia até À torre. 245kms no total. https://www.strava.com/activities/375130211
A ver se agora faço Norte a Sul e também o Este-Oeste
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rui Resposta:
Outubro 18th, 2016 às 6:45 pm
Ora aí está uma bela escolha de percurso. Também já desenhei qualquer coisa para esses lados, até porque já vivi em Aveiro.
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Muitos parabéns, épico e inspirador! Não pude deixar de rir “…deitei-me num jardim onde tinham estado a cortar silvas e só o descobri depois de me deitar” Abraço, cmm
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“Aceitas o desafio?”
Ora aí está!
Quantas vezes não lemos relatos singulares de pedaladas para longe e ficamos a imaginar darmos ao pedal por esses lugares fantásticos e longínquos. O desafio incendeia o nosso desejo e nos incita a dar o click. Quantas vezes já aconteceu comigo responder afirmativamente a muitos desafios de extensas pedaladas, que de outra forma não teria feito. Os Brevets Randonneur são um desses exemplos, vários desafios que conquistados nos deixam felizes e com muito que contar. Parabéns Rui, por teres realizado mais um desafio pessoal e por o teres partilhado connosco deixando aquele bichinho a morder cá dentro. Espero rever-te e pedalar em alguns brevets do próximo ano.
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